Um assunto que nunca vejo tratado é a computação na antiguidade.
Esse é, seguindo a nossa tradição, um assunto espinhoso.
Para
tornar a nossa argumentação um pouco mais compreensível, vamos
recapitular três conceitos:
- Primeiro, Niklaus Wirth coloca que programa = algoritmo + estrutura de dados.
- Segundo, os algoritmos de busca e ordenação são uma classe especial e muito tratada de problemas computacionais, tanto que o assunto "estrutura de dados e seus algoritmos" é em muitos casos um curso à parte.
- O Terceiro e último conceito é o pensamento mágico. Ele é complexo e envolve muito dos algoritmos ocultos no cérebro humano que definem muito daquilo que usualmente é denominado humanidade, porém esmiuçar esses algoritmos não é o nosso objetivo no presente momento.
Por essa razão vamos apenas riscar a superfície desse assunto,
expondo o suficiente para os objetivos desta postagem. Vamos escrever
um pouco sobre figuras. Como destacou Ernest Hans Gombrich no seu
famoso livro "História da Arte", inicialmente todas as figuras e representações eram "mágicas".
Ainda hoje, a maioria das pessoas tem pensamento mágico em relação
a figuras. Uma evidência disso pode ser obtida facilmente com um
experimento em si mesmo: Fure com a ponta seca de um compasso textos
de uma página de jornal; Observe o sentimento que este ato lhe
causou. Isso feito, agora fure os olhos de fotos das páginas de um
jornal e observe se o sentimento é o mesmo. Todo ser humano normal
ficará incomodado ao furar os olhos das fotografias, apesar de saber
que são apenas manchas de tinta na folha, da mesma forma que os
textos o são.
Isso expõe o fato: apesar de nossa aparente modernidade, ainda somos
primitivos o bastante para sermos afetados pela "magia" de
uma figura.
Com estes conceitos em foco vamos abordar alguns dos aspectos da
computação na antiguidade.
Tanto na antiguidade assim como hoje em dia, a maior parte dos
problemas computacionais são de armazenamento, recuperação,
ordenação e busca de dados (The Art of Computer Programming: Volume3: Sorting and Searching).
Apenas que no passado, o melhor computador disponível para processar
dados era o próprio cérebro humano. Esse processamento recebia a
denominação desde "técnica" ou "arte" até
"magia".
Aqui no "Ars Computatio" vamos deixar de lado as
especulações místicas e religiosas e nos ater apenas ao aspecto
computacional dessas "Artes" nos textos e episódios que
abordaremos.
Através do conhecimento de "bons" algoritmos e processos
mentais é possível utilizar procedimentos para se ter acesso às
capacidades ocultas para a maioria das pessoas.
Como Frances A. Yates escreveu no prefácio do livro "The Art of Memory":
"Apenas algumas pessoas sabem que a arte da memória, entre as muitas artes que os gregos inventaram, foi transmitida para Roma, a partir da qual entrou na tradição européia". Ela busca a memorização por meio de um artifício de registrar "lugares" (θέσεις - Théseis) e "imagens" εικόνες - eikónes) na memória... ... Antes da invenção da imprensa, a memória treinada era de vital importância, e essa manipulação da memória deve modificar a psique como um todo."
A "Arte" em questão utilizam um arcabouço de técnicas e
recursos para fazer isso, dando ao seu usuário "poderes",
estes ao ver de muitas pessoas “mágicos”.
Rememoração completa dos fatos e textos, raciocínio relâmpago,
aparente telepatia e premonição, como descrito no "Rhetoricaad Herennium" atribuído a Cícero:
"Marcus A. Seneca podia repetir mais de duas mil palavras na
ordem que haviam sido enunciadas, e se fossem versos, recitá-los de
trás para frente, do último ao primeiro, sem esforço aparente."
Nas definições, Cícero nos dá mais pistas úteis:
"A prudência é o conhecimento das três classes de coisas,
as que são boas, as que são más, e as que não são nem uma nem
outra. Suas partes são a memória, a inteligência e a providência”
...
“Memória é a faculdade pela qual a mente relembra; a
inteligência é a faculdade pela qual a mente averiguá aquilo que é,
e a providência é a faculdade pela qual se compreende ou antecipa
algo que acontecerá antes que ocorra”.
Podemos
assumir que para a maioria dos humanos essas capacidades não apenas
são úteis, mas desejáveis, e ainda hoje possuem caráter "mágico".
Todas
essas técnicas ou artifícios se baseiam no estabelecimento de uma
estrutura de dados explícita, muitas vezes representada por um
diagrama, uma sala ou um edifício.
"Constat igtur artificiosa memoria ex cocis et imaginibus"
- A memória artificial é estruturada na mentalização (ligação imaginária, associação em locais da memória),
escreve Cícero na obra citada.
Em termos mais atuais, uma vez estabelecida a estrutura de dados, o
usuário popula a mesma com os atributos desejados e aprende alguns algoritmos
básicos, e "compila" os referidos algoritmos e essa "base de dados" em "programas". Com essa "compilação", uma forma particular de transferência dos programas para o
subconsciente, os mesmos podem ser usados de forma automática e
transparente, como fazemos com os programas de direção
automobilística. Por fim o usuário pasa a poder criar os seus próprios
"programas" sobre a base de dados que passou a ter.
Na página 292 do livro “the art of memory” vemos uma referência
interessante sobre isso:
“Os esforços para conciliar os sistemas de memória classicos e
o llullismo com suas figuras e letras continuaram a crescer no séc
XVI.
Esse problema só pode ser comparado ao interesse de hoje (1962)
pelos cérebros eletrônicos.
...
Seria de se esperar que um especialista em memória como Giordano
Bruno inventasse (a tão almejada) máquina de memória
universal. Tendo formação dominicana e sendo profundo
conhecedor do llullismo, era o especialista que melhor estava
preparado para resolver o problema.”
Há riqueza e diversidade nesses programas, e os grupos que os
desenvolveram se mostravam bastantes ciumentos de sua divulgação
[“ars reminiscendi”] . Esse foi o caso
dos Dominicanos que acabaram por queimar vivo Giordano Bruno pelo uso
e divulgação de seu "software" proprietário.
Oportunamente postaremos mais sobre esses curiosos e
interessantes algoritmos cerebrais.